05 janeiro, 2007

Coisas

Coisas que eu deveria ter dito

- Você está demitida. D-E-DE, M-I-MI, T-I-TI, D-A-DA. DEMITIDA por todos esses meses de furtos, surrupios e pilantragens com minha pessoa. ao invés de: é, ãhn, então, eu coloquei meu filho na escola, daí que não vamos poder continuar com vc aqui, mas assim, não se ofenda, sem recentimentos, é porque não vai dar mesmo, mas nos gostamos de vc e do seu trabalho.
AI COMO EU SOU TROUXA!!!! MINHA NOSSA! E MENTIROSA TBEM!
- Ficou horrível!!!! Cola meu cabelo de volta agora!!! ao invés de: é... ficou legalzinho... tudo bem né... cresce de novo.
- Que porra! Que é que tu quer lazarento?!?!?! ao invés de: pois não?! em que posso ajuda-lo?

Um comentário:

Krháudynho disse...

Sílvia, querida, a propósito do seu post, segue um dos mais admiráveis textos do Ferando Pessoa que, de certo modo, é mais ou menos o que você pensa.
É longo mas é lindo!


Na noite terrível, substância natural de todas as noites,
Na noite de insônia, substância natural de todas as minhas noites,
Relembro, velando em modorra incômoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.
Relembro, e uma angústia
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.
O irreparável do meu passado — esse é que é o cadáver!
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,
Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.
Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido —
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso — e foi afinal o melhor de mim — é que nem os Deuses fazem viver ...

Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro —
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.

Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,
Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.

O que falhei deveras não tem sperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos,

Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p'ra mim.